


O moço de BH
A história que vou contar não se situa entre as irreais, mas também não há como provar que seja totalmente verdadeira. De qualquer forma, sei que pelo caminho algumas invenções vão me tentar, e como não há maneira de escapar da sedução do imaginário, vamos considerar que seja, afinal, uma história inventada.
Ela aconteceu há muitos anos, num tempo em que o Brasil vivia sob um regime de ditadura civil-militar. Só tomei conhecimento dos fatos porque meu ofício é entrevistar pessoas, tanto para reportagens quanto para projetos de memória oral. E a ditadura e a resistência dos trabalhadores a ela nortearam meu foco nos últimos anos.
Pois bem. Estamos entre o final dos anos 1960 e o começo da década de 1970. Desde o início do golpe civil-militar, em 1964, muitos sindicatos sofreram intervenções e suas lideranças foram presas, desapareceram nos porões da tortura ou estão foragidas. No ano de 1968 os direitos políticos foram cassados. Para os trabalhadores, não há sindicatos nem partidos que os represente.
As empresas, por sua vez, vão consolidando o processo de industrialização do País. Sem os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores, e pactuadas com o governo dos militares (algumas, especialmente multinacionais, colaboram com a vigilância e a repressão), exigem cada vez mais produção e dão as costas aos direitos trabalhistas. É nesse momento que grupos de resistência oriundos de sindicatos e de partidos extintos começam a tentar se organizar dentro das fábricas.
Com isso, centenas (talvez milhares) de intelectuais, estudantes universitários e até mesmo ex-seminaristas passam a se infiltrar como operários dentro das empresas. E é aí que começa de fato essa história. Nosso personagem vem lá de Belo Horizonte, da juventude universitária ligada à igreja católica, para viver num quarto-e-cozinha de uma das mais afastadas cidades da região do Grande ABC, em São Paulo. Vem fazer o que se chamava então ´trabalho político´, ou ´de conscientização´, dentro de uma fábrica.
Essa cidade, Mauá, não faz parte do ´Triângulo ABC´ - formado pelos municípios de Santo André, São Caetano e São Bernardo. O ´triângulo´ concentrava as principais multinacionais em operação no Brasil, especialmente no setor metalúrgico. Mauá, não. Naquele tempo, tinha ainda a maioria de suas ruas sem asfalto e iluminação pública. Era preciso furar poços no quintal das casas para obter água, e não existia no município sequer uma faculdade.
O moço de BH – acho que Júlio é um bom nome pra ele - tinha se formado em sociologia. Era magricela, alto, de sorriso aberto. Antes mesmo da ditadura já atuava como militante na escola. Por isso mesmo, estava na mira da repressão, e não poderia se infiltrar numa fábrica do movimentado Triângulo. O ideal era mesmo um fim de mundo como Mauá, onde além da infraestrutura zero em água, luz e esgoto, também faltava o transporte – os ônibus passavam com largos intervalos e poucos veículos se aventuravam pelas estradas de terra, principalmente nas chuvas. Opção mesmo só o trem, e olhe lá.
Quando criança, Júlio conviveu com muitos trabalhadores. A própria família era exemplo: o pai dava plantão numa penitenciária (onde a família chegou a viver) e numa funerária; a mãe era dona de casa e fazia doces para festas. Desde muito pequeno, ele sabia que precisava se cuidar, porque sua saúde era frágil – escapara por pouco da tuberculose e tinha crises respiratórias constantes. Mas prisão, doença e morte nunca lhe pareceram coisas naturais. Pelo contrário. Muito ligado a religiosos realmente preocupados com o próximo, o menino foi aprendendo que injustiças existem aos montes nesse mundão de Deus, e que a única forma de combatê-las é firmar pé ao lado dos injustiçados.
Foi assim que, num belo dia de sábado, em pleno outono, Júlio desembarcou na estação de trem de Mauá. Trazia uma mala velha, um radinho de pilha e dois ou três livros dentro de uma caixa de camisa envoltos em papel de embrulho – um papel amarelado, rústico, cuja utilização era muito comum no comércio dos anos 1970. Arrematando a composição, um barbante em cruz com um laço no meio: a ideia era que, se a mala fosse revistada, o pacote passasse como um presente, sem qualquer indício da literatura que abrigava. Júlio era um leitor ávido, que gostava também de escrever, especialmente crônicas.
Naquele sábado, ao desembarcar, olhou em volta para ver se reconhecia algum contato. Sabia que deveria se encontrar com um rapaz de camisa amarela que teria nas mãos o jornal local, chamado Diário do Grande ABC. Mas era ainda muito cedo, porque embarcara na primeira composição que fazia o trajeto SP-Mauá. Sentou-se num dos bancos, começou a observar o movimento e logo lhe veio a ideia da crônica do homem solitário que passava os dias vendo a chegada e partida dos trens, sempre esperando por algo ou alguém que não sabia, mas viria. É quase Beckett, pensou. O apito de uma fábrica distante tirou-o do devaneio. Sete horas. A cidade desconhecida amanhecia velozmente.
Não se passaram quinze minutos e ele viu, ao longe, o rapaz de camisa amarela com um jornal nas mãos. Como trazia o exemplar dobrado não dava para ver o nome da publicação, mas Júlio tinha quase certeza de que era seu contato. Um moço muito jovem, menos de 20 anos. Cabelos lisos, trazia numa das mãos o jornal e na outra o cigarro, que tragava displicentemente. Sentou-se e começou a folhear os cadernos – sim, era o tal diário. Quando Júlio chegou a seu lado, o moço lia a seção de esportes.
- É muito fria esta cidade, não? – era a senha combinada.
O moço não tirou os olhos da página:
- Ah, é.
Júlio começou a se virar para ir embora, aquela não era a contrassenha. Mas de repente o outro quase grita, apressado:
- Sim, muito fria! Muito fria mesmo, mas o sol já vai sair!
Júlio abriu o sorriso:
- Pensei que estivesse enganado.
- Desculpe. É que eu tenho duas paixões: a política e o futebol.
- Corintiano?
- Claro, e você?
- Atlético Mineiro. Sou Júlio, de BH.
- E eu Élcio, de Mauá mesmo. Meu primo está esperando a gente no carro. Essa semana você fica na nossa casa e segunda já se apresenta na fábrica.
- Faz o quê, essa fábrica? Peças de carro?
- Não, camarada (e olhou em volta, preocupado com a palavra). Não, amigo – corrigiu. Faz louça. Aqui tem muitas assim. É a Porcelana Mauá.
Júlio começou a caminhar ao lado de Élcio. Não tinha a menor noção de como funcionava uma produção de fábrica de porcelana, mas o outro lhe animou: o mais provável era que lhe colocassem para lixar xícaras, normalmente a primeira função dos novos empregados.
No caminho até a casa da família de Élcio, Júlio foi observando os morros de Mauá e a natureza, que era então abundante. Se não fosse a pobreza extrema seria uma linda cidade. Ao chegarem na pequena casa, numa viela sem luz nem esgoto como a maioria, a mesa do café estava posta, com pão, manteiga e laranjas. Júlio aceitou o lanche e o café, feliz porque era forte e saboroso, bem a seu gosto.
- Pena que aqui não tem pão de queijo pra você, seu Júlio, disse a mãe de Élcio, Candinha.
- Dona Candinha, me chame só de Júlio. Pão de queijo é bom demais, mas eu gosto mesmo é de café. E o seu é o melhor que já experimentei.
Pronto, dona Candinha estava conquistada para sempre. Enfermeira, ela iria cuidar do novo hóspede em suas crises de asma durante muitas madrugadas, já que ele poderia ser preso se aparecesse em qualquer hospital. Ao invés de Júlio, optou por chamá-lo de filho, e assim o tratou enquanto conviveram.
Durante o domingo, Élcio, o irmão Tales e o pai Antônio explicaram como era o trabalho na fábrica de porcelana. Também falaram sobre as formas de comunicação e organização que tentavam levar para a empresa. Havia um jornal, O Forno, que escreviam e rodavam no mimeógrafo da igreja. Nele se faziam denúncias sobre a exploração da empresa, onde as horas extras podiam chegar a cinco por dia sem acréscimo nos salários, e relatavam casos de torturas e mortes no Brasil.
- A gente primeiro vai falando sobre os problemas no trabalho, a falta de pagamento das horas extras, o salário baixo, nenhum equipamento de proteção... Depois devagarzinho muda para a questão política, vai mostrando como tudo está ligado, como essa ditadura tem destruído a vida dos brasileiros que querem um Brasil mais justo para todos”, ensinava seu Antônio.
Júlio ouvia, sorrindo. Sabia por certo como proceder, mas dava-lhe uma grande alegria ser aprendiz daquele homem simples, humilde, cujas mãos calosas pareciam inchadas pelo contato com o barro, o caulim e o calor do forno. Era um privilégio poder dividir aquela caminhada com uma família que também enxergava na religião não o prêmio divino após a morte, mas a solidariedade entre os homens para que a vida fosse digna.
Na segunda, antes das seis da manhã, Júlio já estava na portaria da empresa. Levava um currículo e documentos falsos, entre os quais a carteira profissional.
- Qual seu estudo, rapaz?, perguntou o entrevistador.
- Fiz o primário completo e comecei o ginasial, respondeu.
- Sabe ler e escrever direitinho? Vai ter teste, hein?
- Sei, sim.
Júlio fez o teste e errou de propósito duas palavras: exceção, que quase ninguém acerta mesmo, e expediente, que escreveu espediente. Pronto. Se errasse mais talvez nem fosse contratado.
- Muito bem, o senhor pode começar amanhã mesmo. É turno das 6h às 16h, com uma hora de almoço. Depois de quinze dias passa a ser das 16h às 2h.
- Ganha adicional noturno?
- Não. E cuidado, que se reclamar muito acaba logo na rua.
O novo empregado balançou a cabeça, concordando. Não ia ser nada fácil, mas quanto piores as condições de trabalho mais acesso ele teria aos companheiros de jornada. O inverno se aproximava, e seu Antônio tinha lhe contado que a fábrica, cujas alas eram escaldantes nas proximidades do forno, parecia uma geladeira nos demais setores, principalmente durante as madrugadas.
Não demorou para que os companheiros próximos começassem a admirar o recém-chegado. Ele gostava de ouvir suas histórias e tinha sempre um palpite ou sugestão para resolver os problemas. Falava com a chefia com tranquilidade e parecia ter muita segurança ao se expressar, sempre de forma tranquila, sem alterar a voz. Ao mesmo tempo, ia explicando coisas que eles desconfiavam, mas não tinham certeza: o excesso de trabalho, os direitos desrespeitados, a necessidade de se organizar. E depois a situação do Brasil, a censura e a violência contra os cidadãos...
Com o tempo, Júlio se firmou como uma liderança entre os colegas da ala; mais um pouco e sua atuação chegou ao conhecimento de toda a fábrica. Ele distribuía O Forno e pedia colaboração para denúncias e reportagens no boletim. Por duas vezes conseguiu intervir com êxito em questões trabalhistas: quando uma jovem desmaiou pela segunda vez e foi ameaçada de demissão, ele sugeriu que fizesse uma consulta ao médico, que constatou anemia na moça, garantindo o prazo de estabilidade no emprego para seu tratamento. E quando um operário queimou os olhos com a faísca do forno conseguiu numa reunião com o supervisor a promessa – cumprida - de que seriam comprados óculos de proteção.
O mais curioso é que, embora alguns supervisores detestassem Júlio, seu chefe imediato, Irineu, gostava muito dele. Um dia, depois de meses lixando xícaras e ser promovido (sem aumento salarial) a lixador de pratos de porcelana, ele observou como o mecanismo era obsoleto, e deu a ideia a Irineu:
- Veja, Irineu, esse braço mecânico desce e faz o lixamento de uma peça. Mas se fosse ajustado um milímetro à direita poderia lixar dois pratos ao invés de um, ao mesmo tempo.
O chefe refletiu, tocou o equipamento, comparou. Olhou firme para o subordinado:
- Sensacional, seu Júlio! Sen-sa-ci-o-nal!
Irineu contou a novidade aos supervisores, que chamaram os engenheiros, que por sua vez conversaram com os homens da logística e concluíram: o peão estava certo. Não lhe deram nenhum aumento salarial, mas Irineu conseguiu a promessa de que pagariam ao seu subordinado pelo menos um curso técnico e, ao final, ele deixaria a produção para ocupar um posto no escritório da empresa. Era o começo de uma promissora carreira.
O olhar de Júlio era profundamente grato quando recusou a oferta:
- Irineu, você é um bom chefe. Mas não quero ir para o escritório, não tenho interesse em trabalhar lá.
- Mas rapaz, você vai ganhar mais logo, logo! É uma grande oportunidade!
O sociólogo Júlio negava com a cabeça e pensava:
- Meu Deus, como é difícil enganar gente tão boa assim...
Irineu ainda tentava convencer Júlio quando começou a grande redada de prisões de militantes políticos em Mauá. Seu Antônio foi um dos primeiros a ser preso. Élcio e Tales tiveram de fugir, assim como Júlio, avisado a tempo pelo amigo corintiano. De Mauá seguiu direto para o exílio, só retornando ao Brasil muitos anos depois.
Sei que essa não é uma história tradicional sobre trabalho. Mas, mesmo inventada, guarda semelhança com o que ocorreu de fato em muitas empresas e com muitas pessoas, militantes e trabalhadores valorosos que buscavam a volta da democracia ao País. De Júlio, não posso dizer muito mais. Sei que ele voltou e continuou sua luta solidária pela igualdade, embora por outros caminhos, até morrer. Seu nome real até hoje é lembrado como uma grande referência no combate à fome do povo brasileiro. Na verdade, acabou por se tornar muito maior do que sua própria história. E talvez, mesmo inconscientemente, soubesse disso, pois muitas vezes, na roda de conversas com velhos e jovens peões da Porcelana Mauá, num rápido descanso depois da minguada refeição, iluminava a esperança de algum companheiro que sofria: “Calma, camarada, não se desespere... Quem fica na memória de alguém não morre, não”.
Conto premiado com publicação na edição de "Histórias do Trabalho", de 2014 - Editora da Cidade. O concurso literário da Prefeitura de Porto Alegre - RS registra em textos e imagens o cotidiano dos trabalhadores. No caso do meu conto, uma homenagem a Betinho, cuja trajetória é conhecida da maioria dos brasileiros e, em especial, daqueles que enfrentaram a ditadura civil-militar no Brasil. O conto foi escrito a partir de depoimentos colhidos para meu mestrado sobre a comunicação de resistência entre os trabalhadores na região do Grande ABC nos anos de 1964 a 1985. Betinho, militante na clandestinidade, viveu na cidade de Mauá e trabalhou como operário em uma fábrica de porcelana
Alvo anoitecer
“Você vê, Alvinha, quanta injustiça? Jogada de um lado para outro sem nem poder ver você, depois de tanto tempo dando tudo de melhor pra aqueles esses dois?” Ela me olhava sem ver com aquelas bolinhas de gude verde embaciadas pela névoa do ressentimento, enquanto o sol chegava de leve ao beiral da janela em que finalmente nos reencontrávamos. Era o final do outono, quando tudo parecia tocado por uma melancolia suspensa, com um céu sereno de nuvens iluminadas em tons lilases, azuis e amarelos, e no qual o brilho puro da primeira estrela já se fazia sentir.
Olhei a rua de pedras tortas à procura de algum conhecido, mas ela se encostou ainda mais a mim e me abraçou. O ar tinha uma reverberação boa, de tarde indo embora, e de algum beco vinha um cheiro apetitoso de carne assada. Deixei-me ficar embalada no seu abraço, mas durou pouco, o suficiente apenas para que ela recobrasse o fôlego e a visível vontade de chorar. Então começou a me contar sobre o asilo em que estivera nos últimos quatro meses, um lugar emporcalhado cuja única beleza estava no pequeno jardim nos fundos, em que conseguira com sucesso plantar uma muda de margarida e outra de goiabeira, e ainda assim às escondidas, pois não lhe era permitida qualquer atividade além do chá da tarde com as demais internas, quase sempre tomado dentro do casarão porque a maioria já não podia se locomover.
“Mas eu fugia, sabe Alvinha? Só uma vez me descobriram, quando fui tomar chuva de madrugada, só uma, e mesmo assim valeu a pena, porque viram quem sou eu, isso sim, uma mulher apaixonada pela vida, quase uma poeta, não um caco velho que colocam onde querem e deixam lá, não é? Não é, Alvinha?”. Ela agora respirava muito perto de mim e eu podia sentir o cheiro agridoce de sua velhice, das mãos flácidas recendendo ao talco depois do banho semanal e do perfume de sândalo impregnado na combinação sob o vestido de florzinhas coloridas. Sua presença, embora tristonha, era quase um alento naquele dia que morria sem pressa, despejando uma última claridade antes da chegada do inverno. Como um cobertor morno ou uma rede macia banhados de sol, em que nos deitamos aconchegados para apreciar o vento gelado que enfim virá.
Pensei no quanto a amava e sentira sua falta naqueles meses de distância. Mesmo muito velha, ela enchia a casa com sua presença, suas lembranças de moça feliz e poeta delirante. Passara a vida toda servindo ao marido até a morte dele, e a dois filhos rebeldes a quem dedicara um amor desmedido que näo lhe valeu na hora da verdade. Nos últimos anos, em que sua decrepitude se acentuara vorazmente, dera para declamar as poesias que fizera em épocas errantes; suaves umas, como o romance quase infantil que mantivera por décadas com o falecido; atrozes outras, cuspidas na cara de seus algozes. Mas o que indignava mesmo a familiares e visitantes eram os poemas eróticos que trazia à baila com volúpia, como se novamente os vivesse na pele flácida e enrugada. Entortava o pescoço, girava os olhos com lascívia, mordia os lábios murchos e poderia mesmo fazer o papel ridículo de que a acusavam, não fosse a verdade explícita de cada gesto e o sentimento neles depositados, que só observadores atentos poderiam apreender.
Mas ali não era esse o caso. Andavam muito ocupados para se preocupar com a velha, embora os tivesse parido, amamentado e criado sem um único resmungo além daquele que apenas a caneta revelava a leitores inexistentes, quando a vida lhe sobrava e podia enfim traduzir em poemas seus prazeres e penares. Mas isso fora quando ainda podia enxergar com clareza a linha do papel, e ninguém além dela se lembrava da existência destas palavras. Guardadas na memória, como velhos tesouros a que ninguém faz falta, perdiam-se pelos labirintos de sua senilidade, mas ela sabia driblar as armadilhas do tempo inventando as rimas faltantes, e então ria como uma criança que faz travessuras ou descobre enfim o verbo que lhe faltava para se expressar. “Alvinha, Alvinha, já vivi demais. Mas ainda posso poetar para frente o sonho que ficou lá atrás”, brincava.
Eu sentia seu bafo morno como um carinho naquele sol de despedida, seus dedos pequenos com as pontas geladas a me tocar. Pensei que a conhecera muito tarde, quando já não era possível ajudá-la além de dividir os biscoitos molhados no chá ou remexer no jardim que os filhos acabaram cimentando para espantar as formigas. Sua prova definitiva de fidelidade aconteceu numa noite em que admirávamos a lua cheia, num céu espelhado de prata, e ela me confessou que, se soubesse, uivaria em desvario para homenagear tamanha beleza. Foi sua tentativa um dos motivos pelos quais a levaram para o asilo dois meses depois, acusada de loucura das mais graves, mas nós duas sabíamos que não era assim.
Quando escureceu de todo e a noite enfim chegou ela cochilava de leve ao meu lado, branca e bela como uma boneca de porcelana, e me esgueirei de leve para não despertá-la. No ar dançava a pergunta aflita que fizera momentos antes sobre a imortalidade dos sentimentos.
“Vai se lembrar de mim, Alvinha, vai se lembrar da velha quando eu tiver finalmente partido?”
Descolei-me de seu braço me esgueirando lentamente, enquanto a empregada sem modos a empurrava quase adormecida para o sofá. Ouvi-a resmungar e começar a ressonar de leve – uma velha princesa de outras épocas em seu longo sonho de existir. Tanta existência.... Pensei que em algumas espécies a vida às vezes pode durar além do suportável, mas logo me arrependi, porque sabia que ela conhecia seu final próximo e, não tendo com quem compartilhar o turbilhão desse redemoinho último, talvez o único que realmente valesse a pena lançar aos quatro ventos antes de escoá-lo definitivamente e para nunca mais, aproximara-se de mim deixando-me o registro das horas e a reverberação dos sentidos de sua humanidade, o que era mais do que uma dádiva para um pobre ser sabidamente tão irracional como eu.
Então senti novamente o cheiro de carne assada, de um salto alcei a janela e não pude deixar de uivar com gosto para a gorda lua linda que despontara. A noite, afinal, ainda era o paraíso de todas as cadelas livres e poetas aprisionadas. E prometia.
Conto premiado no Concurso Literário da Prefeitura de São Caetano do Sul, SP, 2009



